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Rede de atenção primária de saúde no enfrentamento da Covid-19

De Corona Wiki


Rede de atenção primária de saúde no enfrentamento da Covid-19

Na construção do Sistema Único de Saúde, a importância da Atenção Primária à Saúde, em especial da Estratégia Saúde da Família, na ampliação do acesso, melhora dos indicadores de saúde e na redução das desigualdades sociorregionais está muito bem estabelecida e valorizada nacional e internacionalmente. As características do modelo brasileiro, de orientação comunitária, baseado no território e nas equipes multiprofissionais, permitiram alcançar os inalcançáveis, associado à mobilização de recursos para além do setor da saúde, com outras políticas de proteção social.

Globalmente, o ano de 2020 começou com crise neoliberal e Covid-19. Com rapidez sem precedentes, a Covid-19 colocou em xeque o neoliberalismo e revirou discursos, concepções e iniciativas de líderes mundiais. Promoveu um giro radical das recomendações do Banco Mundial e do FMI em apoio à adoção de planos de recuperação econômica, com investimentos expressivos nas áreas de saúde e de proteção de populações mais vulneráveis para enfrentar a crise humanitária [1] [2] [3] [4]. Políticos conservadores, com viés privatista e pró-mercado, como Boris Johnson, Emmanuel Macron e Angela Merkel passaram a reconhecer a relevância dos serviços públicos de saúde e da proteção social. No Brasil, a Covid-19 exibe um governo nacional nocauteado, a protagonizar cenas e decisões lamentáveis e a demostrar total insensibilidade e ausência de compaixão com o sofrimento e luto. Em meio ao agravamento da pandemia, o país assistiu a demissão do Ministro da Saúde, defensor do isolamento social e de medidas recomendadas pela OMS para o enfrentamento da pandemia. O novo ministro, um empresário da saúde em alinhamento com Bolsonaro, não mostra capacidade de diálogo efetivo com o SUS e suas instâncias de gestão descentralizadas e apoiadas em colegiados que contam com participação social, promovendo apartação entre os entes federados na gestão da crise sanitária.

Desde antes do ano novo, o governo brasileiro mostrava falta de vontade e capacidade para solucionar os dilemas econômicos e sociais do país, que se agravaram com o curso da pandemia. A circulação comunitária do coronavírus e o aumento expressivo de atendimento por problemas respiratórios graves tornou o SUS uma estrela de primeira grandeza, reconhecida internacionalmente e, agora, pela mídia nacional, sempre tão crítica de problemas e distraída de alcances [5] . Apesar do deboche e descaso do presidente com a Covid-19, desde março de 2020, o governo federal e, particularmente, o Ministério da Saúde se socorrem de políticas públicas efetivadas nos governos Lula e Dilma e que têm de alguma forma sobrevivido ao desmonte em curso desde o golpe de 2016, por absoluta necessidade de operar as ações do Estado e responder à calamidade nacional e mundial. O novo vírus obrigou Bolsonaro e o Ministério da Saúde a retomar o Programa Mais Médicos, a ampliar suas vagas e a recontratar médicos cubanos que permaneceram no Brasil. Mas a súbita utilização e ampliação de vagas e financiamento de um programa tão atacado pelo atual governo é repleta de incertezas. Ingrato aos profissionais cubanos e despreocupado com a saúde dos mais pobres, Bolsonaro dispensou do Mais Médicos profissionais formados no exterior sem o Revalida.

O contexto político nacional confuso e conflagrado multiplica ameaças ao SUS e ao direito universal, integral e equitativo à saúde. É urgente a aplicação de recursos financeiros adicionais ao SUS e apoio à carente infraestrutura especializada de municípios e regiões do Brasil. Muitos dos nossos hospitais, prontos socorros, ambulatórios e serviços especializados espalhados pelo país, especialmente no interior, acumulam deficiências históricas de edificações, leitos, equipamentos, pessoal e insumos 6 . Muito bilhões de reais serão gastos na tentativa de resgatar a economia do país e responder às expectativas do mercado, contudo pouco tem sido feito para garantia do emprego [2] [5] [7]. O grande desafio será fazer o dinheiro chegar aos mais pobres e vulneráveis, àqueles em piores condições de vida, com riscos de adoecimento e de morte extremamente maiores do que dos mais ricos. O desafio no SUS será ampliar o financiamento e a capacidade de resposta da APS no país frente ao agravamento da crise sanitária. A descentralização de investimentos extra decorrentes do enfrentamento à pandemia abre a possibilidade de dinamizar a economia desde a base. Há instrumentos legais que permitem e é possível promover iniciativas que preparem a sociedade para a recessão econômica e para os momentos pós-epidemia. Incentivos financeiros e técnicos às comunidades, pequenos e médios negócios, do campo e da cidade, universidades, escolas técnicas, centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológico são fundamentais para esta recuperação. Urge ampliar a cadeia produtiva para garantir a autonomia do país na produção de máscaras, EPI, equipamentos de ventilação, camas hospitalares, medicamentos e imunobiológicos, kits e testes laboratoriais. Igualmente são necessárias iniciativas para garantir a qualidade e alcance da produção de materiais de comunicação, acesso à internet e tecnologias da informação, educação permanente e divulgação de temas de interesse social.

Entretanto, a ação centralizada em serviços especializados, não será suficiente para enfrentar com êxito a disseminação da epidemia, em um país de dimensões continentais e desigualdades abissais 8 . A Estratégia Saúde da Família, com seu enfoque comunitário e territorial, tem um papel importante na rede assistencial de cuidados, e é imprescindível na abordagem comunitária necessária no enfrentamento de qualquer epidemia. As nossas equipes de SF conhecem o território, suas populações e vulnerabilidades e são fundamentais nesta abordagem comunitária. Será preciso fortalecer a APS e os pressupostos de ação da ESF e dos ACS. À equipe do território cabe coordenar e monitorar as ações dirigidas à população sob sua responsabilidade, em articulação com os serviços especializados e complementares. Incentivos à APS também são capazes de fomentar e fortalecer as redes de apoio social formal e informal tão necessárias para enfrentar o isolamento e a quarentena não apenas de idosos, pessoas acamadas e com múltiplas incapacidades, mas também de crianças, adolescentes, mães e pais, residentes em comunidades urbanas e rurais sob responsabilidade da ESF.

Urge, portanto, ativar esses atributos comunitários das equipes, associar-se às iniciativas solidárias das organizações comunitárias, articular-se intersetorialmente para apoiar sua população e suas diversas vulnerabilidades, e garantir a continuidade das ações de promoção, prevenção e cuidado, criando novos processos de trabalho: na vigilância de saúde, no apoio social e sanitário aos grupos vulneráveis e na continuidade à atenção rotineira para quem dela precise.

As marcantes iniquidades sociaias no acesso e na qualidade de serviços essenciais da rede de saúde [9] [10] [11] e o desafio sanitário da pandemia no Brasil requerem uma abordagem familiar e das redes sociais com foco nos determinantes intermediários da saúde. As medidas de proteção pessoal e ambiental e de necessária restrição à circulação de pessoas com afastamentos social, isolamento de casos e contatos afetam a vida cotidiana com significados diferentes para a saúde e o bem-estar da população de cada área de abrangência da ESF, de cada bairro, favela ou comunidade pobre, de cada município e região do país. Nestes lugares muitas vezes falta mais do que produtos e regras de higiene pessoal, falta água, casa, trabalho e dinheiro para enfrentar cada dia. Em consequência, os efeitos da epidemia serão mais graves para estes brasileiros, em comparação a seus conterrâneos de classes mais abastadas.

Valorizar a APS/ESF na estratégia de ação do país permitirá conhecer a real magnitude da epidemia, contribuir para a redução da transmissão do vírus e qualificar a atenção à saúde da população. Para isso, é necessário reforçar e desenvolver um conjunto de intervenções efetivas da APS/ESF. O fortalecimento da ESF e do SUS no enfrentamento da pandemia facilita a atenção e a orientação de toda população do país. A coordenação proativa das ações de APS/ESF no território tem elevado potencial de reduzir a disseminação do vírus na população e a gravidade clínica dos casos. Essa coordenação será mais efetiva e eficiente se valorizar os pilares básicos do modelo de ESF 12;13, desenvolvido com bons resultados por mais de duas décadas no país, conforme atesta a produção científica da academia e dos serviços de saúde [9] [10] [11] [14] [15]. A ESF tem sido capaz de modificar positivamente o padrão de sobrevivência da população mais pobre, inclusive dos idosos, nossa maior preocupação no momento. Um maior acesso e qualidade da APS, a integralidade e a equidade de suas ações no território serão essenciais na resposta individual e populacional à epidemia.

A pandemia de Covid-19, uma tragédia sanitária e humanitária sem precedentes pode ser uma oportunidade para resgatar a centralidade do SUS na política social e a APS no sistema de saúde brasileiro. A continuidade do forte apoio da sociedade brasileira à organização pública da saúde possibilitaria ao SUS avançar no alcance de seus princípios de universalidade, integralidade e equidade [16]. Viabilizar uma rede de serviços completos e complexos, distribuída em todo o país, exige a gestão da saúde como de interesse público em defesa da vida. Exige a regulação pelo Estado dos serviços públicos e privados de saúde e da prerrogativa de requisitar leitos e serviços em situação de emergência sanitária como a que vivemos.

A Rede de Pesquisa em APS está mobilizada para respaldar as ações da APS no conhecimento científico. Ressalta que a reorganização dos processos de trabalho depende de cada contexto, de cada UBS, de cada município. Não há um modelo único. Apoia o diálogo e a articulação com gestores e trabalhadores de saúde, Conselho Nacional de Saúde e demais conselhos para tornar efetivo o fortalecimento da APS no SUS.

Recomenda:

  • Desenvolver ações de vigilância em saúde para bloquear e reduzir o risco de expansão da epidemia, coordenando no território ações de prevenção primária e secundária da Covid-19, com apoio ao isolamento social e quarentena de casos e contatos, educação em saúde, notificação e acompanhamento cotidiano à distância dos casos em cuidado domiciliar.
  • Separar o fluxo de atenção dos sintomáticos respiratórios/casos suspeitos de Covid-19 do fluxo de pacientes com outros problemas/necessidades.
  • Cuidar dos casos não graves de forma integrada na rede, com os serviços hospitalares e transporte sanitário para referência rápida quando necessário.
  • A linha de cuidado começa por telefone específico para atenção aos sintomáticos respiratórios com comunicação às equipes de casos de sua área para acompanhamento diário por telefone.
  • Oferecer suporte a grupos mais frágeis e vulneráveis que necessitarão de atenção especial no contexto da epidemia, seja por sua situação de saúde e/ou vulnerabilidade social, com protagonismo de ACS e ACE e apoio do NASF, articulado a iniciativas comunitárias e outros setores de políticas públicas (CRAS, escolas, Obras, Saneamento etc). Apoiar o desenvolvimento de capacidades no uso da internet e aplicativos para acesso a benefícios sociais e teleatendimento.
  • Assegurar a continuidade das ações próprias da atenção primária na sua rotina de promoção da saúde, prevenção de agravos e provisão de cuidados com garantia de cuidados rotineiros da APS (pré-natal, hipertensos, diabéticos, vacinação, outras afecções agudas) com novas formas de cuidado cotidiano à distância com disponibilidade de acesso à internet, WhatsApp, telefone, teleconsulta. 17-18
  • Mais SUS – Mais Estado – Mais Saúde Revogação imediata da EC 95 Aplicação imediata de novos recursos para a saúde Não à privatização da APS Internet para todos Em defesa da vida, da democracia e do SUS

Guia Orientador para o enfrentamento da pandemia na Rede de Atenção à Saúde

O Conasems em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) o Guia Orientador para o enfrentamento da pandemia Covid-19 na Rede de Atenção à Saúde. A partir da preocupação da APS em relação às demais situações de saúde, em especial as condições crônicas, frente ao enfoque dado à pandemia de Coronavírus, o instrumento foi estruturado com o apoio do Hospital Albert Einstein. A estratégia busca reforçar as ações de saúde para as outras condições que não o Covid-19, tendo em vista que a mobilização da saúde frente à pandemia tende a desorganizar o sistema. O desafio é garantir o cuidado a partir da dinâmica imposta pela realidade pandêmica, respondendo às situações de saúde já existentes e aquelas que se apresentam a cada dia. [1]


Referências bibliográficas

1 - World Bank. The World Bank Annual Report 2019. Washington,DC, The World Bank, 2019.

2 - World Bank. Joint Statement by World Bank Group President David Malpass and IMF Managing Director Kristalina Georgieva on Outcome of G20 Finance Ministers’ Meeting. Washington, DC, World Bank, 15/04/2020. https://www.worldbank.org/en/news/statement/2020/04/15/joint-statement-byworld-bank-group-president-david-malpass-and-imf-managing-director-kristalina-georgieva-onoutcome-of-g20-finance-ministers-meeting

3 - IMF. Policy Steps to Address the Corona Crisis. Washington, DC, International Monetary Fund Publication, March, 2020. https://www.elibrary.imf.org/view/IMF007/28916-9781513536927/28916- 9781513536927/28916-9781513536927_A001.xml?highlight=true&language=en&redirect=true

4 - Gopinath, G. The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression. Washington, DC, International Monetary Fund, IMF Blog, April 14, 2020. https://blogs.imf.org/2020/04/14/the-great-lockdown-worst-economic-downturn-since-the-greatdepression/

5 - Senado Federal. SUS precisa ser fortalecido, dizem senadores em meio à pandemia. Brasília, DF, Senado Notícias, 23/03/2020. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/23/sus-precisaser-fortalecido-dizem-senadores-em-meio-a-pandemia

6 - CNM. Estudo técnico: Brasil perdeu 23.091 leitos hospitalares em dez anos. Brasília, DF, Confederação Nacional dos Municípios, 19/10/2018. https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca/Estudo-tecnicoLeitos%20hospitalares-2018.pdf 7 - Ministério da Saúde. Governo do Brasil libera R$ 9,4 bilhões para combate ao coronavírus. Brasília, DF, Ministério da Saúde, 03/04/2020. https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46651-governodo-brasil-libera-r-9-4-bilhoes-para-combate-ao-coronavirus

8 - Rede de Pesquisa em APS da ABRASCO. A APS no SUS no enfrentamento da pandemia Covid-19. Rio de Janeiro, Abrasco/Rede de Pesquisa em APS, 2020. https://redeaps.org.br/2020/03/23/a-aps-no-sus-noenfrentamento-da-pandemia-covid-19/

9 - Facchini L, Piccini R, Tomasi E, et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da atenção básica. Ciênc Saúde Colet. 2006; 11(3):669-81.

10 - Facchini L, Thumé E, Nunes B, et al. Governance and health system performance: national and municipal challenges to the Brazilian Family Health Strategy. Governing health systems: for nations and communities around the world Brookline: Lamprey & Lee; 2015.

11 - Facchini, LA; Tomasi, E; Dilelio, AS. Qualidade da Atenção Primária à Saúde no Brasil: avanços, desafios e perspectivas. SAÚDE DEBATE 2018, 42, NÚMERO ESPECIAL 1: 208-

12 - Paim, JS. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica [online]. Salvador: EDUFBA; Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. 356 p. ISBN 978-85-7541-359-3. Available from SciELO Books .

13 - Giovanella L, Mendonça MHM. Atenção Primária à Saúde: seletiva ou coordenadora dos cuidados. Rio de janeiro: Cebes; 2012.

14 - Aquino R, Oliveira NF, Barreto ML. Impact of the family health program on infant mortality in Brazilian municipalities Am J Public Health. 2009; 99(1):87-93.

15 - Barcelos MRB, Lima RCD, Tomasi E, et al. Quality of cervical cancer screening in Brazil: external assessment of the PMAQ. Rev. Saúde Pública. 2017; 51:67.

16 - Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil [internet]. Brasília, DF; 1988. Disponível em: http://www2camaralegbr/ legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142- publicacaooriginal-1-plhtml.

17 - Rede de Pesquisa em APS. Desafios da APS no SUS no enfrentamento da Covid-19. Relatório do Seminário Virtual da Rede APS Abrasco. Abril de 2020. Disponível em: https://redeaps.org.br/wpcontent/uploads/2020/04/Relatorio-Rede-APS-_Semina%CC%81rio-APS-no-SUS-e-Covid-16- Abril-2020-final.pdf

18 - Rede de Pesquisa em APS. A APS no SUS no enfrentamento da pandemia COVID-19. Boletim da Rede APS. Março de 2020. disponível em https://redeaps.org.br/2020/03/23/a-aps-no-sus-noenfrentamento-da-pandemia-covid-19/

19 - BRASIL. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde - CONASEMS. Conselho Nacional de Secretários de Saúde - CONASS. Guia Orientador para o enfrentamento da pandemia Covid-19 na Rede de Atenção à Saúde. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.conasems.org.br/wp-content/uploads/2020/05/Instrumento-Orientador-Conass-Conasems-VERS%C3%83O-FINAL-3.pdf